quarta-feira, 31 de outubro de 2012

José Manuel de Vasconcelos


José Manuel de Vasconcelos, poeta convidado


TRÊS POEMAS


SÉPIA

Rumorosa e perdida, parada num verão de pó
essa imagem ali estava perturbando o meu ritmo
a linha cronometrada dos meus dias
tombando pétrea e vocativa numa certa
bem-aventurança que o sol adornava de cansaço
Aparecia como um adjectivo de um mundo já de trevas
um vórtice de escolhos na ondulação de um mar de tédio
no silêncio subterrâneo dos dias que fugiam
Era de certo modo um novo alfabeto
surgindo de fontes agora eternamente inúteis
mas ainda assim gotejando nesta dourada água
torturando-a num estrondo inatingível e resignado
como se de repente fosse o meio da noite
e a minha cabeça andasse arrastada por cavalos
os degraus da nossa casa previssem o começo de um abismo
Quantos anos teriam passado? Séculos tristes atrás de persianas
viagens iludidas, palavras agora desmembradas
na audácia de um mundo à deriva como um espelho
que cansado deixasse de reflectir os contornos exactos
das coisas e engendrasse monstros, colossais assombros
desvairados prodígios cujas asas nos tocassem numa afronta
A vida zune agachada como um caçador furtivo
puzzle de enganos a dois dedos das margens onde os outros
nos olham sob o peso dos seus infernos
Revejo a imagem ¾  perdura sob esta lâmpada em que navega
o meu peito. Há ainda um pouco de noite para acreditar que
a massa da morte tudo distende, que é possível asilar esta dor
vacilar a vida no trémulo fio que a cinza do tempo morde
mas agora, entre cinza e nuvem, é preciso escrever tudo de novo

De O Inferno é seguro







O ODOR DAS ALFAVACAS

Meu pai, falava do odor das alfavacas
e eu corria ao dicionário («Planta labiada, semelhante
ao mangericão...»), decepcionado.
Imaginava uma vaca primordial
depositária de bíblicos segredos
capaz de mudar o curso das coisas
e de ser fundamental, talvez, na minha vida
mas nada disso: havia-as de caboclo, de cobra, dos montes,
do campo, de cheiro (certamente a do meu pai)
e nenhuma referência à cornuda em que se apascentava
a minha imaginação.
Aprendi assim a desconfiar das palavras
e da realidade
a ver como ambas nos enganam
sem qualquer piedade


De A mão na água que corre






PORTUGAL 1950

Tudo parece ter parado
nesta estrada de silábico
preto e branco
No vinho rudimentar dos dias
o tempo cede à própria imagem
de quem reza rodeado de cabras
no largo chão acabado de pisar
com pé descalço e cântaro à cabeça
Só sombras escorregam dentro
da morfina da luz que
como uma granada
se multiplica em lassidão
de olheiras opacas
As horas são ossos desabrigados
paisagem sem transporte
que muito ao longe estala em repetidas caravelas
Nas vozes servis de escuros animais
nada ilumina o abismo
nem a festa brava desse esgar espantado
atirado ao metal do verão
Resta o olhar dos miúdos
começo de vento e espasmo comprimido
a inventar um vidro
pra decompor o sol na mão

Inédito




Fotos (ilustração dos poemas) Alcobaça: © de Amadeu Baptista

Poemas: © José Manuel de Vasconcelos

José Manuel de Vasconcelos nasceu em Lisboa, é licenciado em Direito e exerce a advocacia. Poeta, ensaísta e tradutor, publicou, Mirífica miragem, As casas e o vento, O tempo fora do tempo, O inferno é seguro e  A mão na água que corre (Prémio Melhor Livro de Poesia SPA/RTP 2012), tendo para publicação próxima um novo livro de poemas, e a reunião dos seus ensaios literários. Colaborador de diversos jornais e revistas literárias, escreveu prefácios e estudos introdutórios, bem como textos teóricos sobre tradução, e sobre artes plásticas. Colaborou em diversas antologias. Tem-se dedicado à divulgação da literatura italiana, tendo organizado uma Antologia do Futurismo Italiano, e tendo traduzido poetas como Eugenio Montale e Umberto Saba.  É colaborador do «Osservatorio Permanente Sugli Studi Pavesiani Nel Mondo»

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